– “Cidadania? Cidadania é tudo”
– “São os direitos sociais”
– “É não ter fome”
-“É o que eu não tive na rua”
Quando papéis e canetas se encontram, a cidadania é desenhada em palavras. Sem limitações quanto ao que é certo ou errado do significado, mulheres trans e travestis, privadas de liberdade, escrevem o que acreditam ser, na prática, a cidadania.
No mês de abril, os sete portões que separam a rua Indianápolis da sala de música do Instituto Penal de Campo Grande, abriram-se para que uma atividade trouxesse a liberdade daquelas mulheres, de serem o que elas são.
Um arco de balões coloridos, estampando as cores do arco-íris, enfeitavam onde seria o palco da ação que envolveu o CEC (Centro Estadual de Cidadania LGBTQIA+), Governo do Estado, Agepen, Coordenadoria Municipal de Políticas para População LGBTQIA+, Prefeitura de Campo Grande, Subsecretaria Municipal de Direitos Humanos e ATMS.
Em círculo, cerca de 30 mulheres recebiam como tesouro um kit de higiene contendo o básico para limpeza pessoal, e ainda auto testes rápidos de HIV. Psicóloga e policial penal no do IPCG (Instituto Penal Campo Grande), Patricia Gabriela Magalhães, explica que ali, para além da privação de liberdade, as detentas representam diferentes perspectivas.
“São pessoas que, algumas vem da prostituição, e apesar de ser inserida em um sistema prisional, elas têm a chance de pensar sobre uma outra profissão, pensar sobre outro estilo de vida. Tem pessoas com dependência química, abandonadas pelos seus familiares pela questão da identidade de gênero. Então, aqui a gente trabalha esse acolhimento da diversidade”, explica Patrícia.
Coordenadora do CEC LGBTQIA+ (Centro Estadual de Cidadania), Gaby Antonietta ressalta que a agenda marca a retomada de um ciclo de rodas de conversas. “Este é um momento que, a partir de uma metodologia, com a roda de conversa, vamos levantando as demandas, porque não tem como a gente pensar em políticas públicas sem ouvir vocês”, fala Gaby.
Para a coordenadora de Políticas Públicas para População LGBTQIA+ e fundadora da ATMS, Cris Stefany, o Estado de Mato Grosso do Sul contempla um número significativo de políticas públicas voltadas à pauta. “Inclusive, sendo um dos estados com o maior número de leis, decretos e ações voltadas para essa população, e isso aconteceu porque, lá em 2001, nós fundamos a Associação das Travestis e Transexuais de Mato Grosso do Sul, e viemos insistindo na efetivação das políticas públicas”, afirma Cris.
Presidente da ATMS, Mikaella Lima, reforçou o papel da entidade ao dizer que é a instituição que cuida das pessoas trans. “Principalmente mulheres trans, não só lá fora, quanto aqui dentro, porque vocês são seres humanos, e nós temos que cuidar de todas as pessoas trans”.
Cidadãs, ainda que privadas da liberdade
Com pedaços de papel e caneta em mãos, foi o momento das mulheres trans e travestis, escreverem o que representava – para cada uma – o significado de cidadania.
“Não tem certo ou errado, tá? É a palavra que vier à cabeça. Depois a gente vai colar e tentar elaborar uma frase depois com as palavras que vocês trouxeram”, explica Gaby Antonietta.
Divididas em dois grupos, as detentas passaram para a escrita o que veio de dentro. Nascida em Rio Verde, uma das mulheres trans, de 22 anos, conta que tem passado os últimos três ali no Instituto Penal.
“Minha profissão? Na verdade eu não tinha profissão, porque eu era o cracuda, entendeu? Na rua, eu nunca tive profissão, fui mudar a minha vida dentro do presídio, parar de usar droga aqui dentro”, relata.
Foi ela quem escreveu que cidadania eram direitos sociais. Resposta que vem da falta deles na própria vida. “Escrevi isso porque é o que eu não tive na rua. O que eu nunca tive, e o que eu tenho vontade de ter. Pra mim, direitos sociais significa a união das pessoas como sociedade, sem preconceito, abrindo mais espaço, mais serviços e mais direitos”, explica.
Na contagem regressiva para deixar os portões trancafiados do Instituto Penal, uma jovem de 23 anos, diz que é usuária de drogas, e se recorda de viver nas ruas desde os 16.
“Cidadania pra mim é fome zero, igualdade para todos. Porque eu acredito que a fome no Brasil é um caso que deve ser mais discutido, tem gente que passa necessidade e outras que têm fome mesmo. Então, acho que direitos iguais para todos, como comida, é uma coisa que devia ser discutida, porque isso seria a melhora de vida para todos os brasileiros”, completa.
Com cabelos longos, castanho escuro, e cílios, uma das mulheres mais falantes é quem também ocupa – ao que parece – uma espécie de liderança diante do grupo. Com 33 anos, a campo-grandense contabiliza mais de uma prisão.
“Entre idas e vindas, eu tiro cadeia desde 2013, e digo que melhorou muito a nossa vida aqui, como população carcerária LGBT. Somos muito mais ouvidas, temos mais voz ativa. Em vista de antes, é muito bom, hoje tem a cela LGBT, antes a gente não tinha ninguém lá fora, e hoje tem secretaria, tem governo que assiste a gente”, sustenta.
Perguntada sobre o que respondeu no papel sobre cidadania, ela responde “liberdade”. “Cidadania também é a gente ter a liberdade de ser quem a gente é, de fazer o que a gente quer, de ter aquela liberdade de viver a vida conforme a gente acha. Nós, homossexuais, travestis, gays, lésbicas, trans, todos nós somos iguais a todo mundo”, finaliza.
Paula Maciulevicius, da Comunicação da Cidadania